
Quando a estatística serve para excluir
As simulações a seguir demonstram, de forma simples e contundente, como o uso seletivo da estatística pode produzir uma aparência de avanço que, na prática, representa um retrocesso. Considerando os próprios critérios definidos pelo Inep para o Saeb 2025 – que valida os resultados quando pelo menos 80% dos alunos realizam a prova e desconsidera as turmas multisseriadas, de correção de fluxo e de Educação Especial -, as três tabelas a seguir mostram como diferentes configurações podem alterar significativamente as médias de desempenho.
A Tabela 1 simula uma escola com turmas seriadas, incluindo todos os alunos.
A Tabela 2 apresenta o cenário resultante da retirada das turmas conforme os critérios de exclusão da Portaria nº 435/2025.
A Tabela 3 simula a ausência de 20% dos alunos, considerando a exclusão daqueles com maior defasagem de aprendizagem.
Essas situações ilustram como a manipulação ou o uso seletivo de critérios técnicos — ainda que dentro das normas — pode elevar artificialmente as médias e ocultar desigualdades, transformando um indicador que deveria orientar políticas públicas em um instrumento de exclusão simbólica.
Nas três simulações apresentadas, o universo de alunos e as notas do Saeb consideradas para o cálculo das médias ponderadas permanecem os mesmos. As variações observadas decorrem exclusivamente das diferentes configurações adotadas em cada cenário – inclusão, exclusão ou ausência de participação – o que evidencia o efeito estatístico das regras de composição do Ideb*, e não uma mudança real na aprendizagem.

Na Tabela 1, todas as turmas são consideradas no cálculo: as regulares, as multisseriadas ou de correção de fluxo e também a sala de Educação Especial, ainda que sem aprendizagem formal. O resultado médio ponderado é 6,5, refletindo a diversidade real da escola pública e as diferenças de percurso, contexto e condição de aprendizagem entre os estudantes. Essa leitura possibilita uma análise concreta dos desafios a enfrentar, bem como dos investimentos necessários para melhorar a aprendizagem e reduzir as desigualdades.
Cabe ressaltar que essa configuração seriada, com separação de turmas por perfil, não era incentivada até 2024 nas escolas municipais da região metropolitana de São Paulo. Nesse período, e até hoje, os alunos com deficiência estão matriculados em turmas regulares, participando do cotidiano escolar com os demais colegas (Tabela 3). Não havia salas multisseriadas nem de correção de fluxo, que passam a poder ser incentivadas a partir da Portaria nº 435, de 3 de julho de 2025. Todos os estudantes estão matriculados em seus respectivos anos, conforme o desenvolvimento natural de sua trajetória escolar, reafirmando o princípio da inclusão como fundamento da política educacional.

Na Tabela 2, o mesmo universo de turmas foi considerado, mas com a exclusão daquelas classificadas como “não representando o desempenho esperado”, como as multisseriadas, de correção de fluxo ou de Educação Especial. O resultado, então, sobe artificialmente para 8,2. A diferença numérica parece indicar progresso, mas o que realmente ocorre é a eliminação simbólica justamente dos que mais precisam de apoio.

Na Tabela 3, a simulação considera apenas as turmas regulares, já sem as turmas de correção de fluxo ou as salas multisseriadas, conforme o cenário previsto pela Portaria nº 435/2025. O que está em jogo aqui é a lógica dos 80%: estima-se que 20% dos alunos deixaram de participar da avaliação, mesmo pertencendo a turmas regulares, em situações nas quais há incentivo implícito para a ausência dos estudantes com maior defasagem de aprendizagem. Essa redução no número de participantes eleva a média geral de 6,5 para 7,4, sem que tenha havido qualquer melhoria efetiva na aprendizagem. O resultado evidencia como a aplicação do critério de participação mínima pode, na prática, gerar distorções estatísticas e mascarar desigualdades, reforçando o problema ético e metodológico discutido ao longo do texto.
O perigo da distorção nos índices
A Portaria nº 435, de 3 de julho de 2025, que define as diretrizes do Saeb 2025, reafirma critérios técnicos que podem ampliar desigualdades. Segundo o artigo 7º, não serão consideradas na população de referência as turmas multisseriadas, de correção de fluxo, de Educação de Jovens e Adultos e as classes, escolas ou serviços especializados de Educação Especial não integrantes do ensino regular.
A mesma portaria também altera o escopo da exclusão das turmas multisseriadas, retirando a referência anterior às escolas localizadas em áreas rurais. Até as edições anteriores do Saeb, essa limitação tinha como objetivo evitar distorções em contextos específicos, como pequenas escolas do campo com turmas compostas por diferentes anos. No entanto, ao suprimir o termo “rural”, a nova redação amplia a possibilidade de exclusão para qualquer rede de ensino, inclusive as urbanas, o que representa uma mudança de orientação. Com isso, uma medida originalmente técnica assume contornos políticos, pois pode afetar diretamente a representatividade das amostras e fragilizar a comparabilidade dos resultados entre regiões, redes e períodos históricos.
Mesmo que as redes municipais ainda não adotem a configuração seriada e mantenham a matrícula de todos os alunos em turmas regulares, o próprio desenho do Saeb 2025 cria condições para exclusões estratégicas. O critério que valida o resultado do Saeb, e por consequência o resultado do Ideb, exige a participação de pelo menos 80% dos alunos, o que permite que até 20% fiquem de fora da prova. Em um contexto em que não há previsão de adaptação para estudantes com deficiência ou com defasagem de aprendizagem, essa margem pode ser usada, de forma implícita, para induzir ausências que podem modificar as médias de desempenho. A combinação desse critério com a possibilidade de reconfiguração de turmas abre caminho para distorções significativas nos resultados e aumenta o risco de exclusões intencionais, especialmente em redes submetidas à política de bonificação e à cobrança por resultados. Sob o argumento da eficiência, gestores e professores passam a ser avaliados por indicadores que não medem inclusão nem equidade, mas apenas desempenho estatístico.
Essa lógica reforça a política de bonificação em detrimento da valorização profissional e dos planos de carreira dos professores, deslocando o foco da qualidade social da educação para o cumprimento de metas numéricas e comparações competitivas entre escolas e redes.
Embora os artigos 15 a 17 da Portaria nº 435/2025 reconheçam o direito dos estudantes público-alvo da Educação Especial ao Atendimento Educacional Especializado (AEE), o texto normativo revela uma contradição. O artigo 15 condiciona esse direito às informações registradas na Matrícula Inicial do Censo Escolar, o que significa que a efetivação do atendimento depende do correto preenchimento cadastral, e não de uma política universal de acessibilidade. Ainda que o cadastro esteja atualizado, o artigo 16 nega, no momento do agendamento, a produção de instrumentos adaptados e o atendimento especializado para esses estudantes. Já o artigo 17 limita o atendimento às condições e recursos já disponíveis nas próprias escolas, como tempo adicional, sala separada ou uso de provas em braille e ledor.
Além disso, sendo o conteúdo das provas sigiloso, os professores e profissionais do Atendimento Educacional Especializado (AEE) não têm acesso antecipado aos instrumentos avaliativos, o que impossibilita qualquer adaptação prévia adequada às necessidades específicas dos alunos. Essa restrição torna o atendimento especializado praticamente inviável, mesmo quando há intenção pedagógica de garantir a acessibilidade.
Na prática, o Saeb 2025 transfere às unidades escolares a responsabilidade de garantir acessibilidade sem oferecer apoio técnico, financeiro ou material por parte do Inep, o que restringe o princípio da inclusão e transforma um direito em mera formalidade administrativa. O resultado é um modelo de inclusão apenas formal, em que a participação dos alunos com deficiência é reconhecida estatisticamente, mas não assegurada pedagogicamente.
Assim, o que se apresenta como um aprimoramento técnico transforma-se em um retrocesso metodológico e político, fragilizando a credibilidade estatística do Ideb e esvaziando seu sentido como instrumento de monitoramento da política educacional.
Ética docente e compromisso público
Em contextos em que o resultado do Saeb é vinculado a prêmios, bônus ou ranqueamentos, podem surgir incentivos implícitos à exclusão: desestimular a presença de alunos com deficiência, não convocar aqueles com baixo desempenho ou omitir turmas consideradas “fracas”. Essas práticas, ainda que sutis, violam a ética docente e o sentido público da avaliação, produzindo um Ideb inflado e uma política educacional baseada em ilusões estatísticas. A função da avaliação é compreender, não punir; orientar, não excluir. A avaliação é formativa.
Um debate em revisão
Em conversa recente com representantes da SECADI, foi informado que o Ministério da Educação está revisando aspectos do Saeb e do Ideb, justamente para evitar que critérios técnicos induzam exclusões, falseamento de dados e ampliação das desigualdades. Esse processo é fundamental para que a avaliação volte a cumprir sua função pública: produzir conhecimento sobre a realidade educacional e orientar políticas que garantam o direito à aprendizagem de todos.
Consideração final
O momento exige atenção redobrada às alterações na forma de organização das turmas nas escolas, pois há risco de que os índices deixem de ser comparáveis, além de se tornarem excludentes. Mais do que resultados, o que está em jogo é o sentido da educação pública como espaço de inclusão, justiça e compromisso coletivo.
*Nota: O Ideb (Índice de desenvolvimento da educação básica) é o principal indicador de qualidade da educação básica no Brasil, calculado pelo INEP a partir de dois componentes: o desempenho dos alunos nas provas do Saeb (Língua Portuguesa e Matemática) e o indicador de rendimento escolar, que expressa a taxa de aprovação dos estudantes. A nota do Saeb é padronizada em escala de 0 a 10 e reflete apenas o desempenho dos alunos presentes. O indicador de rendimento, por sua vez, mede o fluxo escolar – isto é, quantos alunos avançam sem reprovar – e, embora pareça sinalizar avanço, muitas vezes resulta de pressões para elevar artificialmente o índice. Assim, ao combinar desempenho e aprovação, o Ideb tende a induzir comportamentos voltados ao cumprimento de metas numéricas, em detrimento da aprendizagem efetiva, da inclusão e da equidade educacional.
Referência normativa
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Portaria nº 435, de 3 de julho de 2025. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 jul. 2025. disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-435-de-3-de-julho-de-2025-*-663695513 acesso 26/10/2025

