Em defesa dos servidores e do serviço público de qualidade

O fiasco da audiência sobre o SNE: despreparo e riscos à educação pública na Câmara de São Bernardo do Campo

COMPARTILHE com os botões abaixo!

Por Inês Pauli¹

O SINDSERV-SBC acompanhou, estarrecido, a sessão da Câmara Municipal de São Bernardo do Campo, realizada em 16 de abril de 2025, e a Audiência Pública promovida em 24 de abril de 2025, que se propôs a debater o Sistema Nacional de Educação. Ambos os eventos expuseram graves deficiências no debate sobre políticas públicas educacionais. A superficialidade no tratamento de indicadores técnicos, a promoção de agendas privatistas e a negligência com dados concretos revelam uma desconexão preocupante entre o Legislativo municipal e as urgentes demandas da educação pública.

Na sessão de 16 de abril de 2025, ao invés de debater seriamente os desafios da rede, assistimos à distorção do que revelam os dados do IDEB e do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Os índices foram tratados como ‘notas’ isoladas, desconsiderando tanto sua real complexidade metodológica quanto seu caráter reducionista frente à realidade escolar.

O IDEB combina taxa de aprovação (Censo Escolar) e desempenho em Língua Portuguesa e Matemática (Saeb) – um indicador que, mesmo exigindo equilíbrio técnico entre fluxo e aprendizagem, segue a lógica das avaliações externas: padronizam o que é diverso, comparam o incomparável e ignoram que avaliar deveria ser um processo de produção de sentido coletivo, não de controle estatístico. Enquanto a avaliação formativa dialoga com o Projeto Político-Pedagógico das escolas, fortalecendo a autonomia docente, esses índices impõem homogeneidade, como se realidades educacionais distintas pudessem ser medidas pela mesma régua.

Reduzir a educação a ‘notas soltas’ não apenas ignora a complexidade do IDEB, mas também o contexto pós-pandêmico que agravou desigualdades. Pior: transforma a avaliação, que deveria ser ferramenta diagnóstica para a transformação, em mero instrumento de ranqueamento estéril, descolada das necessidades reais das comunidades escolares.

Em São Bernardo do Campo, outro dado gravíssimo ignorado diz respeito ao número de estudantes avaliados no Saeb: em 2019, eram 8.388 estudantes, caindo para 7.261 em 2023, uma redução de 1.127 estudantes. O que aconteceu entre 2019 e 2023? Nenhuma reflexão sobre os impactos da pandemia, da evasão escolar ou da precarização das políticas educacionais foi feita.

A nota técnica do VAAR é clara: monitorar e reduzir o abandono escolar está diretamente ligado à ação dos gestores municipais. Diferentemente da expansão de matrículas, que depende de fatores externos, assegurar a permanência dos estudantes é um dever político imediato.

O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), criado em 2007, combina fluxo escolar e aprendizagem, equilibrando a qualidade dos resultados. Se um sistema apenas retiver alunos ou aprovar sem qualidade, o índice refletirá essa deficiência, permitindo uma análise realista da educação pública.

No entanto, o despreparo é ainda mais evidente quando se trata do VAAR. Poucos vereadores compreenderam a condicionalidade III, de redução das desigualdades. São Bernardo do Campo não foi habilitada a receber os recursos da complementação-VAAR porque não reduziu a desigualdade racial e socioeconômica. Dos 5.568 municípios brasileiros, apenas 2.023 atingiram plenamente essa condicionalidade; no Estado de São Paulo, apenas 95 dos 645 municípios conseguiram.

A proporção de estudantes pretos, pardos e indígenas com desempenho escolar inadequado é baseada na autodeclaração racial feita pelas famílias. Muitos estudantes pardos são categorizados como brancos no Censo Escolar, seja por falhas metodológicas ou pressão do racismo estrutural, o que pode inflar artificialmente os índices de desempenho atribuídos aos estudantes brancos e reduzir os índices dos estudantes pretos e indígenas, mascarando a desigualdade real e distorcendo os resultados. Estatísticas são recortes da realidade: podem incluir ou excluir sujeitos, dependendo dos interesses que orientam sua construção.

Importante ressaltar que a desigualdade socioeconômica não depende apenas da educação, mas também das políticas públicas aprovadas ou negligenciadas pela própria Câmara Legislativa. Ignorar esse fato é desonesto.

Decisões da gestão municipal anterior, como a distribuição de chromebooks sem planejamento pedagógico, o desmonte de bibliotecas públicas (como a do CENFORPE), a substituição de práticas de leitura consolidadas pela adoção da plataforma Elefante Letrado e a implementação dos projetos STEAM e Mindlab sem fundamentação pedagógica consistente, foram tomadas sem diálogo com a comunidade escolar.

Mais do que a simples adoção de novas tecnologias e projetos, a falta de respeito à autonomia das escolas, a imposição de práticas alheias ao Projeto Político-Pedagógico (PPP) e a ausência de políticas consistentes de valorização profissional resultaram na perda da memória pedagógica acumulada e agravaram a alta rotatividade de professores.

O Concurso Público nº 01/2022 já alcançou o chamamento de 2.637 docentes, muitos sem experiência na rede, evidenciando a precarização da rede e a perda de memória histórica.

Antes da gestão municipal de 2017-2024, o salário dos professores ultrapassava em mais de 60% o piso nacional. Desde que essa gestão assumiu, gradualmente houve uma redução salarial, e ao final do mandato em 2024, o vencimento inicial dos professores praticamente se equiparava ao piso nacional, em uma cidade com custo de vida elevado, o que contribuiu de maneira decisiva para a alta rotatividade de profissionais e a precarização da rede.

A audiência pública de 24 de abril ilustrou o despreparo institucional. Convidaram uma coach vinculada ao Instituto BER, sem formação acadêmica relevante para a área da política pública da educação, cujo Instagram indica a oferta de mentorias e consultorias. Também foi convidada uma palestrante religiosa, que em seu Instagram se apresenta como escritora, tradutora, conferencista, esposa, mãe e avó, associada a uma página intitulada “Torne-se um mantenedor da Consciência Cristã”.

Além disso, participou um empresário do setor privado, sócio-proprietário da Interschool Brasil (Centro Educacional Bilíngue LTDA), instituição de educação infantil e ensino fundamental sediada em Goiânia, que em sua fala citou o astrólogo conspiracionista e negacionista Olavo de Carvalho.

Nenhum pesquisador da UFABC, universidade local, foi consultado. O secretário municipal de Educação, único participante com conhecimento fundamentado em pesquisas relevantes para a área, teve sua fala interrompida por um dos convidados, em claro desrespeito ao debate qualificado.

A indignação foi amplamente compartilhada pelos profissionais da educação da rede municipal presentes na audiência pública, que se sentiram profundamente desrespeitados diante das falas absurdas e desinformadas sobre o Plano Nacional de Educação (PNE). Reações como vaias e protestos pontuais marcaram o evento, evidenciando o abismo entre o discurso ideologicamente enviesado dos palestrantes, que distorciam completamente a natureza do SNE, e a realidade vivida nas escolas públicas.

Os três convidados defenderam uma visão distorcida e alarmista do SNE, ecoando narrativas como:

  • “O SNE seria uma porta de entrada para a ‘ideologia marxista’ nas escolas”
  • “Ameaçaria tradições familiares e religiosas”
  • “Promoveria uma suposta ‘sexualização precoce’ das crianças”
  • “Seria um instrumento de ‘ditadura de minorias'”

 

Essas afirmações grotescamente equivocadas, que mais pareciam tiradas de panfletos de teorias conspiratórias do que de um debate sério sobre políticas educacionais, escancararam o despreparo dos organizadores ao selecionar palestrantes que, em vez de contribuir para o debate, transformaram a audiência em palco de propaganda ideológica. Enquanto os convidados propagavam esse discurso fantasioso e descolado da realidade, pedagogos, muitos com décadas de experiência em sala de aula e gestão escolar, que lidam diariamente com salários defasados e desafios pedagógicos reais, viam seu trabalho ser reduzido a caricaturas ideológicas e sua expertise, completamente ignorada.

A defesa do homeschooling destacou-se como proposta perigosa. Dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (2021) revelam que 59,6% das violências contra crianças são cometidas por pais ou mães. Em um país com cerca de 35 mil denúncias anuais e 132,4 mil violações registradas, incentivar o ensino domiciliar significa expor crianças a riscos já amplamente documentados. Os interesses privatistas ficaram evidentes, e incentivar o ensino domiciliar nesse contexto é um atentado contra os direitos da criança e do adolescente.

Atacaram o Plano Nacional de Educação (PNE) sob a acusação de “ideologia”, deixando evidente que a intenção é enfraquecer e acabar com a gestão democrática das escolas públicas.

Acusar o PNE de “ideologização” é uma estratégia retórica que desvia o foco de seu verdadeiro propósito: garantir educação pública, laica e socialmente referenciada, conforme a Constituição Federal.

A tentativa de vincular o PNE a agendas religiosas ou mercadológicas representa um ataque ao pacto democrático que sustenta as políticas educacionais brasileiras.

O PNE é, na realidade, a expressão dos direitos constitucionais: educação pública, gratuita, laica e de qualidade para todos. A verdadeira tentativa de imposição ideológica parte justamente daqueles que, ao acusarem o PNE, buscam implantar seus valores privados e religiosos, violando direitos históricos.

Além de alguns poucos vereadores que defenderam a escola pública, o único participante com propriedade de fala na mesa proposta foi o atual secretário de educação, que defendeu a escola pública, o fazer docente e a liberdade de cátedra como apregoa a Constituição Federal, com base em pesquisas educacionais sérias e referendadas, reafirmando a educação como espaço de transformação social.

A sessão foi uma demonstração de ignorância, oportunismo político, desprezo pela educação pública e interesses no mínimo questionáveis. É urgente que a população de São Bernardo do Campo esteja atenta para defender a educação pública contra retrocessos e exija políticas baseadas em pesquisas científicas robustas do campo educacional, valorização docente e implantação integral do novo PNE que está em tramitação no Congresso Nacional – construído por meio de conferências realizadas em todo o país – como garantia de direitos.

 

1. Inês Pauli é doutoranda em Educação (Estado, Sociedade e Educação) na Universidade de São Paulo (USP) e mestra em Ensino de Ciências e Matemática pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp, 2020), com especialização em Ciência e Tecnologia pela UFABC. Pesquisadora do Núcleo de Avaliação Institucional da Faculdade de Educação da USP (NAI-FEUSP) e vinculada ao CEPPES/CNPq, desenvolve estudos nas áreas de Planejamento Educacional, Avaliação Institucional e Políticas Públicas para Educação.

COMPARTILHE através dos botões abaixo:

FILIE-SE AO SINDICATO!

Benefícios e descontos para você e sua família e apoio jurídico para seus direitos!