A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que liberou a concessão da gestão de escolas públicas paulistas à iniciativa privada, é um marco simbólico da supremacia de uma racionalidade estatística/numérica sobre um projeto social e democrático de educação. O argumento de que a suspensão da licitação causaria prejuízos à ordem pública e à política educacional esconde uma escolha política: o alinhamento à lógica da eficiência numérica, do controle de resultados e da terceirização da responsabilidade do Estado.
Contrariando o Artigo 205 da Constituição Federal de 1988, que estabelece a educação como direito de todos e dever do Estado, essa decisão reduz a educação a meros indicadores de desempenho e padronização, como o IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). A Constituição é clara: o objetivo da educação é promover o desenvolvimento integral da pessoa, sua qualificação para o trabalho e sua formação para o exercício da cidadania. Portanto, a educação não pode ser reduzida a metas produtivas ou desempenhos estatísticos — ela deve ser garantida com equidade.
No entanto, o que se observa é um sistema que impõe condicionalidades para o repasse de verbas públicas, privilegiando municípios e escolas com melhores indicadores no IDEB e punindo aqueles com resultados mais baixos. Essa lógica, baseada no discurso da meritocracia, ignora as desigualdades estruturais entre regiões, escolas e estudantes. Em vez de promover a justiça social e a reparação histórica da desigualdade social, o Estado premia quem já está em vantagem e penaliza os territórios mais vulneráveis, aprofundando a exclusão educacional.
Essa lógica é ainda mais grave quando as avaliações priorizam disciplinas utilitaristas, ligadas ao desempenho em avaliações padronizadas, como o IDEB, deixando de lado áreas fundamentais como as ciências humanas, a filosofia, a história, a arte e a sociologia. O currículo da escola pública, assim, se estreita. O que deveria formar cidadãos críticos, capazes de compreender e transformar sua realidade, passa a formar apenas indivíduos aptos a responder aos testes — ou melhor, a atender à lógica do mercado.
Enquanto isso, nas escolas privadas, essas disciplinas permanecem, alimentando o desenvolvimento do pensamento crítico, da criatividade e desenvolvimento humano pleno. Cria-se, assim, um abismo entre os modelos educacionais, consolidando dois projetos de educação: um retrospecto à autonomia e ao pensamento crítico; outro, à conformidade e à funcionalidade.
Esse cenário nos leva a questionar: para quem serve a escola pública? Se ela deve servir à comunidade no sentido de sua emancipação, na melhoria da qualidade de sua vida, sua avaliação precisa considerar os saberes, as práticas e os desafios nesse território. Caso contrário, se a escola for vista como um mero produto a ser gerido, os indicadores de produtividade bastarão, mas a função social da educação será restrita a formação de um sujeito disciplinado e pouco contestador das agruras do sistema produtivo.
A gestão escolar não pode ser tratada como mera prestação de serviços, em que alunos são clientes e professores, funcionários. Isso implica reduzir o papel do Estado a um agente contratual e o da escola a um espaço de cumprimento de metas, transformando o direito à educação em mercadorias reguladas por indicadores. O risco é apagar o papel histórico e coletivo da escola pública como espaço de convivência, pertencimento e transformação.
Portanto, mais do que discutir modelos de gestão de forma isolada, é urgente perguntar: qual é o projeto de País que desejamos construir? Se queremos um país democrático, que respeite a juventude e supere as desigualdades, a escola pública deve refletir esses valores. Isso significa uma educação que valorize a diversidade, reconheça o contexto local e forme cidadãos conscientes e críticos. Só assim a escola pública será um espaço de transformação, e não apenas uma estatística em um relatório.
A escola pública deve ser um espaço de emancipação, não de adestramento. Um lugar de construção de futuros, não de reprodução de desigualdades. Defender essa escola é também defender a democracia, o direito e a dignidade. Porque educação não é mercadoria.