Por Inês Pauli1
Em 2020, participei do Minicurso – Educação Baseada em Evidências: Aportes Críticos, promovido pela Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica do Instituto de Estudos Avançados da USP.2 Na ocasião, uma afirmação do professor e médico Dr. Naomar de Almeida Filho, tornou-se central em minhas reflexões: “Ciência não se reduz a evidências”. A frase, aparentemente simples, sintetiza uma crítica profunda ao reducionismo técnico que ameaça transformar a educação em mera aplicação de protocolos, ignorando sua dimensão humana e política.
Sinceramente, naquele momento, não imaginei que a metodologia da Educação Baseada em Evidências (EBE) fosse adotada em qualquer sistema de ensino. A expectativa era a de que os estudos críticos acumulados até então, somados à contundência das análises de pesquisadoras como a Dra. Beatriz Cardoso, tivessem contribuído para o esgotamento desse paradigma. Na época, a pesquisadora expôs os equívocos da defesa intransigente de João Batista Oliveira, que imagino seja o mesmo do Instituto Alfa e Beto, cujo discurso desqualifica outras formas legítimas de produção de conhecimento educacional. No entanto, percebe-se hoje que a lógica privatista, a padronização de materiais e a defesa da randomização continuam a se expandir, configurando uma ameaça concreta à construção de políticas educacionais democráticas e contextualizadas.
Essa provocação ressoou nas discussões desenvolvidas ao longo do curso, que problematizam a transposição acrítica do modelo da Medicina Baseada em Evidências (MBE) para o campo educacional. Enquanto a MBE opera com ensaios clínicos controlados e com variáveis isoláveis, a educação enfrenta desafios radicalmente distintos, marcados por variáveis sociais, culturais e afetivas que não se adequam a metodologias rígidas. O curso destacou, por exemplo, como práticas pedagógicas testadas em contextos privilegiados, como escolas de países desenvolvidos, fracassam ao serem transplantadas para realidades marcadas por desigualdades estruturais, como as periferias brasileiras. A tentativa de padronizar o ensino sob o manto da neutralidade científica revelou-se não apenas ingênua, mas potencialmente excludente, ao desconsiderar que educar é um ato coletivo, permeado por incertezas, mediação e compromissos ético-políticos que extrapolam a lógica métrica.
Nas discussões do curso, o Dr. Naomar de Almeida Filho fundamenta suas críticas à Medicina Baseada em Evidências (MBE), apontando que até mesmo na área médica essa abordagem, em seus moldes originais, vem sendo progressivamente questionada e superada. Em seu lugar, ele propõe uma nova formulação conceitual e prática: “Cuidados em Saúde mediados por competência tecnológica crítica, visando a qualidade, a equidade, com humanismo e solidariedade”. Segundo ele, essa expressão deveria substituir a noção de MBE, pois incorpora dimensões éticas, políticas e humanizadoras que os modelos técnico-científicos tradicionais tendem a negligenciar.
Algumas reflexões trazidas pelo minicurso:
1. Reducionismo científico e falta de adaptação ao contexto educacional
● Analogia problemática com a medicina: A MBE prioriza ensaios clínicos controlados e metanálises como “evidência de ouro”, mas a educação lida com variáveis complexas (sociais, culturais, afetivas) que não são facilmente isoladas ou padronizadas. Como destacado pelos participantes, a educação é um ato coletivo e contextual, enquanto a medicina (especialmente a de precisão) tende ao individualismo.
● Exemplo do vídeo: A crítica à ideia de que práticas testadas em contextos específicos (como países desenvolvidos) possam ser aplicadas diretamente em realidades distintas (como escolas públicas brasileiras), desconsiderando desigualdades estruturais.
2. Erosão da autonomia docente e da natureza pedagógica
● Protocolos versus criatividade: A EBE corre o risco de reduzir o papel do professor a um “técnico” que segue protocolos pré-definidos, ignorando a necessidade de adaptação às singularidades dos alunos. Como mencionado, a educação envolve mediação, improvisação e diálogo, elementos difíceis de capturar em metodologias rígidas.
● Exemplo: A fala da professora Dra. Beatriz Cardoso sobre o perigo de transformar o professor em um mero executor de “melhores práticas”, desvalorizando seu conhecimento experiencial.
3. Viés político e comercial por trás das “evidências”
● Interesses externos: Há uma preocupação com a influência de fundações, think tanks e empresas privadas na promoção de modelos padronizados de EBE, muitas vezes alinhados a agendas neoliberais de eficiência e accountability. Isso pode levar à mercantilização da educação e à desconsideração de questões sociais mais amplas.
4. Limitações epistemológicas da ciência experimental na educação
● Ciência como processo dinâmico: A crítica à noção de que apenas estudos quantitativos (como RCTs) produzem “evidências válidas” ignora a riqueza de pesquisas qualitativas, etnográficas e participativas, essenciais para entender processos educacionais. Como afirmado, a educação é um campo prático-reflexivo, não experimental.
● Exemplo: A referência ao sociólogo Howard Becker reforça que a produção de conhecimento é interpretativa e não pode ser reduzida a dados estatísticos.
5. Desatenção às desigualdades estruturais
● Falsa neutralidade: A EBE frequentemente ignora que alunos e escolas operam em contextos desiguais (ex.: falta de alimentação, infraestrutura precária). Como
destacado por uma cursista, crianças em vulnerabilidade social precisam de apoio integral, não apenas de intervenções técnicas.
● Exemplo: A crítica à ideia de que a EBE promove “equidade” ao padronizar práticas, quando, na realidade, pode aprofundar desigualdades ao não considerar variáveis socioeconômicas.
6. PBL (Problem-Based Learning, ou Aprendizagem Baseada em Problemas): Uma resposta pedagógica à crise dos modelos tecnicistas
● Enquanto a EBE corre o risco de reduzir a educação a protocolos padronizados (inspirados na medicina baseada em evidências), o PBL surge como uma metodologia crítica possível, segundo o professor Naomar, mas adaptada para valorizar a sociabilidade, a autonomia docente e a aprendizagem contextualizada.
● Como destacado pelo Professor Naomar, o PBL exemplifica como a educação pode se beneficiar de diálogos com outros campos sem aderir ao reducionismo da EBE. Sua essência está na construção coletiva de conhecimento, não na aplicação acrítica de “evidências”.
7. Crítica epistemológica à noção de evidência: reducionismo e falácias
Por volta dos 35 minutos do vídeo, o Professor Naomar Almeida Filho apresenta um slide com a seguinte afirmação: “Na epistemologia contemporânea, a categoria ‘evidências’ tem sido objeto de desconstrução e contestação com base em fundamentos e falácias da ideia de validade por evidências científicas”.
Em sua fala, ele complementa: “Qualquer coisa que seja baseada somente em evidências é uma ciência reduzida e reducionista”.
A fala do Professor Naomar sintetiza o cerne da crítica: a obsessão por evidências na educação não apenas reproduz o reducionismo da medicina, mas também desconsidera décadas de avanços epistemológicos que desafiam a neutralidade e a universalidade da ciência. A educação, como prática humana complexa, exige um diálogo com as evidências sem fetichizá-las, reconhecendo que o conhecimento válido emerge da práxis reflexiva, da diversidade metodológica e do compromisso ético com a equidade.
Uma crítica construtiva à EBE
Os participantes não rejeitam a ciência ou a pesquisa, mas defendem que a educação exige um diálogo crítico com as evidências, contextualizando-as e integrando-as à prática reflexiva dos professores. Como sintetizado por Dr. Nilson José Machado, “a verdade não se confunde com evidência”: a educação é um processo humano, aberto e político, que não cabe em protocolos fechados. A EBE precisa nutrir mentes — e isso demanda mais do que dados.
Análise crítica da Dra. Beatriz Cardoso à Educação Baseada em Evidências (EBE)
Segundo a Dra. Beatriz Cardoso, a discussão em torno da Educação Baseada em Evidências (EBE) precisa ser aprofundada com senso crítico. Em sua avaliação, muitos dos discursos favoráveis à EBE apresentam uma visão excessivamente otimista, sugerindo que o uso de evidências científicas, especialmente aquelas oriundas de experimentos controlados, seria suficiente para transformar o professor em um sujeito reflexivo. Essa suposição, na sua visão, representa uma simplificação perigosa de um processo formativo muito mais complexo. Caso esse raciocínio fosse verdadeiro, os sistemas educacionais no mundo inteiro já teriam avançado significativamente. A construção de uma prática docente reflexiva ainda é um desafio em curso e demanda tempo, investimento e condições institucionais adequadas.
A pesquisadora critica a forma como muitas vezes o conhecimento produzido fora da escola é imposto de maneira unidirecional, desconsiderando o professor e as equipes escolares como sujeitos epistêmicos. Ainda que reforce a importância da ciência e da pesquisa, ela alerta para os riscos de se adotar uma lógica tecnicista, que descontextualiza os processos educativos e reduz a prática pedagógica a um campo de aplicação de protocolos. Em vez de fomentar a autonomia e a inteligência profissional dos educadores, esse modelo acaba por simplificar a complexidade do fazer docente.
Nesse contexto, a Dra. Beatriz menciona o pesquisador João Batista como alguém que, em seus textos, desqualifica teorias pedagógicas consolidadas, como a de Piaget. Segundo ela, ao propor uma substituição desses referenciais por uma nova abordagem baseada em dados experimentais, esse tipo de discurso ignora que o conhecimento educacional é histórico e acumulativo. Ela acrescenta que até mesmo o Programa Nacional de Alfabetização (PNA) incorre nesse mesmo erro, ao apresentar novos referenciais como se fossem capazes de substituir os saberes já produzidos, desconsiderando a experiência acumulada no campo da educação. Embora não estabeleça uma ligação direta entre João Batista e a formulação do PNA, ela os cita como exemplos de discursos que compartilham essa tendência de desqualificação do conhecimento anterior.
Outro ponto central de sua fala é a crítica à ideia de protagonismo docente tal como tem sido empregada por parte dos defensores da EBE. De acordo com Beatriz Cardoso, afirmar que o professor é protagonista é insuficiente. Para que esse protagonismo se realize de forma efetiva, é necessário garantir condições concretas para o exercício da autonomia docente nos processos formativos. Isso inclui a criação de tempo dedicado ao estudo, o incentivo à liderança nos estudos desenvolvidos na escola e o acesso a formações em que os educadores tenham voz ativa. Para ela, é justamente a ausência dessas condições que compromete o desenvolvimento de uma postura reflexiva nas equipes escolares. A educação, lembra, é um fenômeno sistêmico, e não uma responsabilidade isolada de indivíduos.
A pesquisadora também faz referência ao trabalho de Susan Goldin-Meadow, que afirma a existência de múltiplas formas legítimas de produção do conhecimento científico, incluindo pesquisas observacionais, experimentais, qualitativas e quantitativas. Cada abordagem exige competências específicas dos pesquisadores e pode oferecer contribuições distintas. Ao valorizar excessivamente apenas uma dessas formas, especialmente os ensaios clínicos randomizados, corre-se o risco de empobrecer o campo educacional e comprometer sua diversidade epistemológica.
Beatriz Cardoso expressa preocupação com a transformação do professor em um técnico que apenas consome pesquisas validadas academicamente, sem condições de produzir conhecimento a partir de sua própria experiência. A exigência de que o docente leia metanálises e implemente os estudos mais reconhecidos segundo padrões externos tende a
distanciá-lo da realidade concreta da escola. Esse movimento, segundo ela, compromete a criatividade, a autonomia e a capacidade de reflexão que são essenciais à prática docente.
Ela denomina esse fenômeno de “canto da sereia dos dados”, referindo-se à sedução de discursos que prometem eficácia e controle, mas que na verdade reduzem a educação à lógica do laboratório. A escola, para ela, deve apresentar resultados e garantir a aprendizagem das crianças, mas isso não pode ocorrer à custa da transformação da sala de aula em um espaço experimental rigidamente controlado. Há um risco real de desumanização da prática educativa quando se busca aplicar protocolos científicos descolados do contexto social, histórico e subjetivo onde o ensino ocorre.
Ao final de sua fala, a pesquisadora chama atenção para o vocabulário técnico que tem sido disseminado junto à defesa da EBE. Termos como “científico”, “eficaz” e “acompanhamento individual”, embora aparentemente neutros, carregam pressupostos ideológicos que moldam políticas e práticas escolares de maneira muitas vezes autoritária. Ela menciona, como exemplo, o grupo Pedagogia no Grata, que afirma que “é melhor ter evidências do que não ter evidências” e que defende o acompanhamento individual com base científica. Para Beatriz Cardoso, esse tipo de discurso precisa ser analisado com atenção, pois contribui para a naturalização de uma única visão de ciência, reduzindo o campo educacional à aplicação de verdades externas, em detrimento da escuta, da pluralidade e da valorização da prática pedagógica.
Portanto, diante do avanço silencioso da Educação Baseada em Evidências nas redes públicas de ensino, torna-se cada vez mais urgente retomar esse debate com os profissionais da educação. Em alguns municípios do ABC paulista, essa discussão não é abstrata: ela se manifesta concretamente em políticas educacionais que vêm atrelando bonificações ao cumprimento de metas, priorizando avaliações externas padronizadas e reduzindo o currículo escolar a treinos em Língua Portuguesa e Matemática. Sob a justificativa da eficácia e da melhoria dos indicadores, instala-se uma lógica de responsabilização individual, que transforma o processo educativo em um jogo de resultados, metas e rankings.
O retorno da EBE em sua versão tecnocrática se articula ainda à imposição de materiais didáticos padronizados, à redução da prática pedagógica à aplicação de protocolos, e à centralidade conferida às “boas práticas” validadas por estudos distantes da realidade concreta das escolas. Esse movimento está longe de ser neutro: ele carrega consigo uma agenda de controle, gerencialismo e desvalorização da autonomia docente, muitas vezes impulsionada por fundações privadas e organizações alinhadas a modelos de governança empresarial.
Ao reduzir a complexidade do ato educativo a métricas e dados isolados, corre-se o risco de esvaziar o compromisso ético, político e coletivo que sustenta a escola pública. É por isso que precisamos retomar essa discussão. A crítica à EBE não nega a importância da ciência ou da pesquisa, mas afirma que nenhuma evidência é suficiente se não estiver ancorada na escuta, na práxis reflexiva e na diversidade dos territórios escolares.
Como bem disse o professor Nilson José Machado, “a verdade não se confunde com evidência”. E como nos ensinou o professor Naomar de Almeida Filho, “ciência não se reduz a evidências”. Retomar essa discussão é, portanto, também defender a escola pública como espaço de formação integral, plural e comprometido com a transformação social.
1 Inês Pauli é doutoranda em Educação na área de Estado, Sociedade e Educação pela Universidade de São Paulo (USP), mestra em Ensino de Ciências e Matemática pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp, 2020); especialização em Ciência e Tecnologia – Universidade Federal do ABC, UFABC, Brasil. Integrante da equipe de estudos do Núcleo de Avaliação Institucional da Faculdade de Educação da USP (NAI-FEUSP) e vinculada ao CEPPES/CNPq, desenvolvendo pesquisas em Planejamento, Avaliação e Política Educacional.